31 mai 2008 por Rodrigo Rangel e Solange Azevedo - Revista Época
De: Brasil > Distrito Federal > br
Era meio de tarde, em dezembro de 1995, quando o pernambucano Fernando Alcântara de Figueiredo pisou pela primeira vez em Brasília, mochila nas costas e uma pequena mala à mão. Tinha 22 anos. Após 11 meses no curso preparatório para sargento do Exército em Juiz de Fora, Minas Gerais, ele desembarcava na capital da República para se apresentar ao Batalhão da Guarda Presidencial, o BGP, unidade conhecida por ter uma das rotinas mais puxadas da caserna. Era um dia atípico no Planalto Central. Fazia sol na capital numa época do ano em que o normal é chover. Do aeroporto, Fernando rumou direto para o alojamento do batalhão. Foi lá que, dias depois, conheceu o potiguar Laci Marinho de Araújo, outro recém-chegado a Brasília. Laci, que fizera o curso preparatório em Três Corações, interior mineiro, fora escalado para o mesmo BGP. Demorou pouco para os dois se identificarem. Em questão de dias, a amizade parecia ter se iniciado havia mais de década.
Unidos: Os sargentos Laci Marinho de Araújo e Fernando Alcântara de Figueiredo. "É tudo como um casal normal", dizem
A relação que Laci e Fernando tinham acabado de inaugurar nortearia, de modo marcante, o futuro da dupla tanto dentro quanto fora do Exército. A amizade já durava quase dois anos quando, em 1997, eles resolveram sair do alojamento militar para morar juntos numa república. Mais tarde, mudaram para um apartamento. A proximidade entre os dois passou a despertar a atenção dos companheiros de quartel, inclusive de seus superiores. Ao que tudo indicava, ali poderia haver mais que uma amizade. Fernando e Laci, no entanto, garantiam ser apenas grandes amigos.
Na semana passada, isso mudou. Em entrevista a ÉPOCA, eles assumiram que, desde que se mudaram do alojamento do batalhão para a república, em 1997, vivem uma relação amorosa. É o primeiro caso de militares da ativa do Exército Brasileiro que, além de assumirem ser homossexuais, admitem uma relação estável e, mais que isso, mostram a cara. “Nós somos um casal e mantemos uma relação estável há mais de dez anos”, diz Laci, hoje com 36 anos. Com voz empostada e marcada por rompantes, ele não economiza nos movimentos com as mãos. O pé direito, elevado pelo cruzar de pernas, se mexe sem parar. A sandália de borracha parece viva de tanto que balança. Laci gosta de falar. Ele prossegue contando como é a vida com Fernando. “Até no cartão de crédito nós temos o outro como dependente”, diz. “É tudo como um casal normal”, emenda Fernando, de 34 anos.
Hoje, os sargentos De Araújo, nome de guerra de Laci, e Alcântara (Fernando) vivem num apartamento funcional das Forças Armadas, na Asa Norte de Brasília. Ali, assim como no quartel, destoam do restante da tropa. Eles parecem exóticos em comparação com os vizinhos. Os demais apartamentos são ocupados por famílias compostas de homem, mulher e, em muitos casos, crianças. “Nosso caso é diferente”, afirma Laci. “Nós não assumíamos a relação antes, mas com certeza os vizinhos desconfiavam”, diz Fernando.
O sargento, freqüentador de academias de ginástica, cabelo sempre aprumado à base de gel, diz que descobriu ser homossexual durante o curso de formação, em Minas Gerais. Apaixonou-se por um colega de turma. “Foi um amor platônico… Ele passou a ser um grande amigo. Na formatura, quando decidi contar, ele respondeu que eu estava confundindo as coisas”, afirma. Fernando diz ser homossexual. Laci, por sua vez, se diz bissexual. “Eu tenho certeza de que a pessoa não vira gay, ela já nasce gay. Mesmo gostando também de homens, até certa idade eu só tive namoradas. Depois é que eu resolvi me relacionar com pessoas do mesmo sexo”, afirma. O sargento, dedos cheios de anéis (”São mantras, para me proteger e para proteger as pessoas que vivem à minha volta”), faz sobrancelha, usa cremes anti-envelhecimento e tira a barba com cera. Ele diz não ter dúvidas de que o Exército, pelas peculiaridades da vida no quartel, se torna atraente para os homossexuais. “Existe coisa melhor para um homossexual do que tomar banho com um monte de homem pelado e sarado? Para um gay, as Forças Armadas são um paraíso”, afirma. “Há muito mais homossexual no Exército do que se imagina. O problema é que muitos são enrustidos. Eu mesmo já fui cantado e assediado várias vezes, até por um general”, diz Fernando, ou sargento Alcântara. Os dois mesmos, até dias atrás, não assumiam publicamente. Eles dizem que nem suas famílias sabiam. “Vão saber agora, com esta entrevista”, afirma Fernando. Ambos são de famílias conservadoras. Fernando diz que sua mãe é católica fervorosa. Laci tem um irmão padre.
“Para um gay, as Forças Armadas são um paraíso”, diz Laci.
“No Exército há muito mais do que se imagina”
Apesar da opção sexual, em 13 anos de Exército Laci e Fernando passaram por funções típicas do militar-padrão. Ainda no Batalhão da Guarda Presidencial, além de proteger as instalações que servem de morada e local de trabalho aos presidentes da República, os dois, classificados oficialmente como combatentes da arma de infantaria, chegaram a ser instrutores. Ensinavam técnicas militares aos soldados recém-chegados. Sabem manejar armas com precisão, de pistolas a fuzis e metralhadoras. “Eu me considero um militar operacional”, diz o sargento Fernando, 70 quilos, 1,67 metro. Na farda, além do broche azul e vermelho que designa os sargentos de carreira, ele carrega o brevê de montanha, uma comprovação de que está apto a combater em regiões de geografia acidentada.
Laci, o sargento De Araújo, se divide entre as Forças Armadas e a carreira artística. É vocalista de uma banda chamada Terceira Visão e faz apresentações como cover da cantora Cássia Eller, morta em 2001. No palco, assume outro nome: Eron Anderson. O sargento Fernando apóia a vocação do parceiro: “Eu sou uma espécie de empresário do Laci”, diz.
A decisão de “sair do armário”, termo usado para definir o momento em que se admite publicamente ser homossexual, é duríssima e exige muita coragem. Em algumas áreas, como nas artes e na moda, o preconceito tende a ser menor. Tende-se a associar mais facilmente a sensibilidade característica desses criadores à feminilidade. Um cantor ou ator de cinema assumir ser gay choca bem menos que um político ou militar. A imagem de virilidade e masculinidade do Exército se opõe ao estereótipo do homossexual efeminado.
Ao longo das últimas décadas, a sociedade tem mudado a percepção das diferentes orientações sexuais. Isso tem se refletido na aprovação de leis que garantem aos homossexuais os mesmos direitos dados aos héteros. Por trás dessas conquistas há um histórico de batalhas (leia o quadro abaixo). O primeiro levante conhecido contra o preconceito aos homossexuais ocorreu na Alemanha, em 1869. Uma carta do médico húngaro Karoly Benkert ao Ministério da Justiça alemão criticava o artigo 175 do Código Penal do país, que classificava como delito o ato sexual entre homens. A carta de Benkert é considerada o primeiro registro da luta contra a discriminação sexual. Ali nascia o primeiro movimento organizado de estudo da homossexualidade, o Comitê Científico e Humanitário.
Abrindo o armário
O movimento pelo fim do preconceito e pelos direitos dos homossexuais ganhou força na década de 1960. No Brasil também ocorreram marcos históricos.
Durante a Segunda Guerra Mundial, mais de 50 mil homossexuais foram enviados aos campos de concentração, para ser “tratados”, o que incluía a castração, ou simplesmente exterminados. Estima-se que 7 mil foram mortos. Na semana passada, o prefeito de Berlim, Klaus Wowereit, gay assumido, inaugurou um memorial em homenagem aos homossexuais mortos na Segunda Guerra, em frente ao Memorial do Holocausto dos judeus. Como se estivesse olhando através de uma janela, o observador vê uma cena de filme em preto e branco: dois homens se beijando projetados no interior de um bloco retangular de concreto de cerca de 4 metros de altura. O movimento contra a discriminação aos homossexuais ganhou força na década de 1960, depois de um ataque de policiais a um bar em Nova York. Passados 40 anos da rebelião que se tornou um marco na luta contra o preconceito, a Parada do Orgulho GLBT de São Paulo atrai todos os anos mais de 2 milhões de pessoas.
Nas Forças Armadas, recorrer à Justiça comum tem sido uma prerrogativa de militares que reclamam do tratamento recebido por seus superiores. No caso de Laci e Fernando, a batalha que a dupla vem travando com o Exército começou por causa da “dupla jornada” de Laci como sargento e cover de Cássia Eller. A história é controversa. Em 2007, Laci passou seis meses fora do trabalho. Alegou problemas de saúde. “Já diagnosticaram várias coisas, como lesão medular, esclerose múltipla, disfunção labiríntica, depressão… Mas até hoje não sei ao certo o que é”, diz ele. O sargento mostra caixas de remédios de tarja preta e atestados médicos como evidência do problema.
Os superiores de Laci dizem que ele se recusou a receber os médicos enviados para fazer uma perícia. Decidiu-se transferi-lo do Hospital Geral de Brasília, onde estava formalmente lotado, para o 4º Batalhão de Infantaria Leve, em Osasco, São Paulo. Laci não compareceu ao novo posto. Segundo o comando, não apresentou novos atestados. A postura do sargento foi considerada “inadequada, incoerente, indisciplinada e duvidosa”, segundo nota enviada a ÉPOCA pelo Exército. No dia 21 de maio, a Justiça Militar mandou prendê-lo. Hoje, ele é considerado desertor e, ao final do processo, poderá ser expulso do Exército.
Os dois dizem estar na mira do comando por terem feito uma denúncia que aponta indícios de corrupção no hospital militar. Fernando chegou a formalizar a denúncia, citando supostas irregularidades em contratos no hospital. Na guerra com o comando, Laci e Fernando gravaram um general que os chefiava. O casal levou a gravação ao Ministério Público, que abriu processo para apurar a denúncia. A conversa gravada passou a ser parte do processo. Num dos despachos, o procurador do MP diz que o general, Adhemar da Costa Machado Filho, se refere a um dos sargentos como “marido” do outro.
Na semana passada, o terceiro-sargento Fabiano de Barros Portela, de 28 anos, conseguiu na Justiça o direito de ser reintegrado, pelo menos temporariamente, aos quadros do Exército. Ele havia sido expulso em abril porque os médicos da tropa o consideraram “incapaz definitivamente para o exercício das funções militares”. Segundo o Exército, há dois anos Portela “passou a apresentar um quadro de depressão profunda” e o problema de saúde prejudicava “seu desempenho profissional”. Lotado no 17º Batalhão de Logística de Juiz de Fora, Minas Gerais, Portela trabalhava no Hospital Militar. De acordo com o advogado José Carlos Stephan, a depressão do sargento é decorrente da discriminação sofrida no batalhão. “Portela tentou suicídio três vezes. Vivia insatisfeito com o próprio corpo, mas não sabia por quê. Então ele procurou ajuda psicológica e descobriu que era uma mulher num corpo de homem”, afirma Stephan. Recentemente o sargento se submeteu a uma cirurgia para mudança de sexo.
Diversidade nas tropas
Como as Forças Armadas de dez países lidam com a homossexualidade
As carteiras que identificam Laci e Fernando como Sargentos de Infantaria. A Justiça Militar decretou a prisão de Laci no dia 21 de maio. Ele hoje é considerado desertor
O debate sobre a presença de homossexuais e bissexuais nas Forças Armadas está na agenda eleitoral americana. Barack Obama, pré-candidato democrata à Presidência dos Estados Unidos, defende a permanência de gays assumidos entre os militares. Ele anunciou que, se for eleito, pedirá o fim da política do “don’t ask, don’t tell” (“não pergunte, não conte”). A política foi adotada em 1993, quando o presidente Bill Clinton fracassou ao tentar acabar com o banimento dos gays e lésbicas das fileiras militares. Um ano antes, um marinheiro, Allen Schindler Jr., foi executado por colegas de trabalho por ser homossexual. Entre o banimento total e a liberação total, Clinton e o Congresso chegaram ao compromisso do “não pergunte, não conte”. De lá para cá, mais de 12.500 militares foram dispensados por serem gays, lésbicas ou bissexuais, segundo a Servicemembers Legal Defense Network (SLDN), ONG que monitora a Justiça militar americana. Aubrey Sarvis, diretor-executivo da ONG, afirma que 65 mil militares americanos que estão na ativa são gays, lésbicas ou bissexuais. Isso representaria 12,6% do contingente dos Estados Unidos. “Mais de 1 milhão de pessoas da comunidade (gays, lésbicas e bissexuais) serviram às Forças Armadas desde a Primeira Guerra Mundial”, diz Sarvis.
A expulsão de militares das Forças Armadas americanas costuma ocorrer com maior freqüência entre os de baixa patente. O caso do coronel Margarethe Cammermeyer ainda é exceção. Em 1992, ela revelou que era lésbica e foi afastada da Guarda Nacional. Recorreu à Justiça e, tempos depois, acabou reintegrada. A história repercutiu tanto que virou filme, produzido por Barbra Streisand. A atriz Glenn Close fez o papel principal em Servindo em Silêncio. Em 1998, Margarethe concorreu ao Senado. Venceu as primárias entre os Democratas, mas perdeu para o general republicano Jack Metcalf.
Desde 1993, mais de 12.500 militares foram dispensados das Forças Armadas dos EUA por serem gays, lésbicas ou bissexuaisA História registra casos de líderes militares homossexuais que obtiveram sucesso em suas campanhas. O mais conhecido foi Alexandre, o Grande, que viveu três séculos antes da era cristã e ainda hoje ocupa um lugar de honra na galeria dos maiores generais de todos os tempos. Ele teria sido amante de seu general Heféstion. Ao longo dos séculos, a visão sobre a homossexualidade mudou, mas ela sempre existiu nas Forças Armadas, como em qualquer área da sociedade (leia o quadro à direita). No longa-metragem Beleza Americana, vencedor do Oscar de melhor filme no ano 2000, o clímax dramático envolve um coronel da reserva do Exército dos Estados Unidos que camufla sua homossexualidade. A passagem revela a tensão sexual que pode existir em uma personalidade encurralada pelo rigor da disciplina militar. Na trama, o coronel Frank Fitts é um ex-fuzileiro naval que coleciona armas e até pratos usados por oficiais nazistas, com suásticas impressas. Ao espionar uma visita noturna do filho à casa do vizinho, Fitts acredita que os dois fazem sexo. O rapaz é expulso de casa e o militar parte enfurecido para a casa do vizinho. Tremendo, parece lutar contra uma pulsão interior. Por fim, atira-se sobre quem julga ser o amante do filho e o beija na boca. Minutos depois, volta para matá-lo com um tiro na cabeça. Essa cena retrata como a rígida cultura militar rejeita a homossexualidade. A atitude corajosa dos sargentos Fernando e Laci é um primeiro passo para tentar mudar essa cultura no Brasil.
RODRIGO RANGEL E SOLANGE AZEVEDO
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