Com certeza, o problema da forma com que a maioria dos
evangélicos brasileiros interpreta a Bíblia, não é o fato de a interpretarem
literalmente. Mas é o fato de que interpretam “alguns” textos de forma literal,
em detrimento de outros. Em outras palavras, o problema não está na
literalidade, mas na seletividade.
Infelizmente, a seletividade de textos que devem ser
lidos de forma literal, sempre produz exigências a serem feitas aos outros. Ao
mesmo tempo, os textos que são interpretados com mais leveza, com mais
flexibilidade, à luz de recursos de contextualização, são aqueles que os
intérpretes avaliam a si mesmos. Seria esse um comportamento honesto?
Um exemplo.
Os novos embates entre líderes da comunidade evangélica
brasileira e os homossexuais dão testemunho inequívoco disso. Contra essa
comunidade de pessoas, os fundamentos bíblicos são buscados em seis passagens
consideradas como palavras absolutas de Deus: Genesis 19,1-29; Levítico 18,22 e
20,13; Romanos 1,18-25; 1ª Coríntios 6,9; e 1ª Timóteo 1,10. Com
tais passagens bíblicas, lidas literalmente, os outros são confrontados no seu
modo de ser, sem a mínima possibilidade de que tais passagens sejam
flexibilizadas por recursos hermenêuticos de contextualização.
Sendo palavras absolutas de Deus, tais passagens
conseguem mobilizar pessoas para campanhas, marchas, passeatas contra os ímpios
e imorais que vivem um estilo de vida contrário a estas palavras sagradas. Em
Alagoas, por exemplo, muitos líderes cristãos e pessoas de igreja sentiram-se
mobilizadas a participar do evento evangélico que, no dia 1 de Julho de 2011em
Brasília, se opôs à aprovação da PL-122.
De minha parte, decidi não mais me opor a isto. Isso
porque me reconheço entre aqueles que lêem a Bíblia seletivamente. Eu também
interpreto algumas passagens bíblicas de forma literal, em detrimento de
outras. Na verdade, se isso for um problema hermenêutico, é um problema comum a
toda comunidade cristã. Não há quem leia a Bíblia sem operar certa seletividade
na hora de considerar literalmente este ou aquele texto. Quase sempre é a
própria conveniência da pessoa que está em jogo, misturado à herança que cada
um recebeu de sua tradição religiosa. E eu, como parte desse universo, também
me reconheço como intérprete da Bíblia que não consegue escapar à idéia de que
alguns textos devem ser lidos literalmente, enquanto outros não.
Então, a questão mais importante, a meu ver, seria a
seguinte:
Por que não aplicar a interpretação literal de
algumas passagens bíblicas também a nós mesmos? Por que somos tão implacáveis e
inflexíveis no momento de ler certos textos de modo literal contra os outros,
ao mesmo tempo em que aliviamos, metaforizamos ou contextualizamos certos
textos bíblicos que diriam respeito a nós mesmos? Isso quando não nos
esquecemos completamente de alguns deles!
___ Dois rápidos exemplos:
1. Pensando no caso alagoano em
especial, me pergunto o seguinte: se nós reconhecêssemos como palavra absoluta
de Deus o texto de Mateus 25,31-40, teríamos ido protestar em Brasília contra a
PL-122, ou teríamos ido protestar na Praça dos Martírios em Maceió, em frente
ao gabinete do governador, pela situação das famílias alagoanas que há quatorze
meses vivem desumanamente nas barracas de lona desde as enchentes do ano
passado? Digo isto, porque Mateus 25,31-40 afirma que Jesus é os pobres, e que
os pobres são o próprio Jesus. Isto não é palavra absoluta de Deus? Se é, por
que não mobiliza ninguém? Seria por que, neste caso, ela não deve ser lida
também de forma literal? Por quê?
2. Penso no estilo de vida de
muitos pastores. Muitos dos condenam com a Bíblia na mão os homossexuais, têm
um estilo de vida caracterizado pelo conforto pessoal, pela luxúria, pelo
acúmulo de dinheiro e de poder, pelos títulos acadêmicos e políticos de destaque
na sociedade, pelo exibicionismo dos bens e das realizações. Por que não
interpretarmos com a mesma intensidade literal usada nos textos usados contra
os homossexuais, uma profusão de textos das Escrituras que condenam estes
mesmos pecados?
Eu me envolverei nos embates contra a PL-122 no mesmo dia
em que vir tais pastores interpretarem literalmente as advertências de Jesus
contra o perigo das riquezas (Mt 19,23-30; Mc 10,23-31; Lc 18,24-30),
aplicando-as a si mesmos.
Quem sabe, no dia em que o modo de ler Romanos 1,18-25 –
texto que serve de suporte no Novo Testamento para reprovar o estilo de vida
homossexual – for o mesmo modo de ler Mateus 19,16-22, em que Jesus põe como
condição para o seu seguimento o esvaziamento de todas as riquezas pessoais.
Ou quem sabe no dia em que todas as passagens dirigidas
contra os pastores, denunciando-lhes a forma leviana, desumana, desleixada, com
que tratam suas “ovelhas” (Jeremias 23,1-4; Ezequiel 34,1-10), forem lidas com
os mesmos caprichos literais a que estamos nos referindo.
Quem sabe, no dia em que as inúmeras passagens bíblicas
que condenam as injustiças como a corrupção, a opressão aos pobres, o
materialismo humano, tiverem o mesmo efeito de mobilização missionária que
passagens como Romanos 1,18-25 têm para produzir marchas, paradas e protestos
contra a PL-122. Em Alagoas, no dia em que eu vir essas passagens mobilizarem
igrejas e pastores para passeatas contra a situação vergonhosa e calamitosa do
povo dessa terra, eu me junto a qualquer outra manifestação baseada em leituras
literais da Bíblia.
Minha conclusão disso tudo, portanto, é a seguinte:
A Bíblia nunca foi de fato palavra de Deus para
tais pessoas. Se fosse, os textos que aqui apresentamos receberiam o mesmo
tratamento daqueles usados contra os homossexuais, e as mobilizações contra as
injustiças sociais seriam capítulos freqüentes de nossa história. Se a Bíblia
fosse a palavra absoluta de Deus para os pastores, bispos e apóstolos, estes
ostentariam modos de vida diferentes, assemelhando-se minimamente àquele pobre
e simples camponês a quem chamam de “Senhor”.
A Bíblia, nestes casos, é somente um
"livro-instrumento" usado por tais pessoas para dar fundamento aos
preconceitos, às maquinações, à sede de poder, à ganância e à soberba que
habitam seus corações. Assim, em lugar de ser a palavra absoluta de Deus, ela
acaba por se tornar a palavra maldita do Diabo Humano, sendo o que há de mais
eficaz quando se trata de espalhar rancores, aprofundar preconceitos e dividir
as pessoas.
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