O falso bom combate
Para estudioso da Aids, campanhas foram interditadas no Brasil por força das
bancadas religiosas
07 de dezembro de 2013 | 15h 56
Monica Manir - O Estado de S. Paulo
De certa forma, Veriano Terto Jr. concorda com o slogan da campanha nacional
para o combate à aids: "Para viver melhor, é preciso saber". É preciso saber
que, nos últimos dias, uma pessoa próxima a ele perambulou por sete hospitais no
Rio de Janeiro até ser internada de emergência quase nos estertores da doença. E
que outra conhecida, também soropositiva, vagou por dias em unidades de saúde
cariocas até a cegueira total. "Ela perdeu a visão pela inoperância do sistema",
afirma, indignado, o professor da UFRJ. "É uma maratona macabra."
Navesh Chitarakar/Reuters
'O preconceito ainda é o grande obstáculo
para enfrentar o vírus do HIV'.
Nascido no Piauí e criado no Rio desde menino, Veriano Terto Jr. trabalha há
quase um ano no Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Federal. Nos 23 anos
anteriores, fez parte da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia).
Acompanha, portanto, pari passu os programas de prevenção e tratamento da
infecção no País. Na segunda-feira, pós-Dia Mundial de Combate à Aids, ele
aprovou o protocolo que permite a adultos com HIV receber de graça os
medicamentos antirretrovirais antes mesmo do primeiro sintoma. O que o angustia
é prever que, com a expansão da oferta do tratamento, 100 mil pessoas a mais
devem procurar um sistema de saúde acachapado, e que ainda estigmatiza os
pacientes. Fora que as campanhas de governo - "de qualquer governo" - não
atingem quem têm de atingir nesse caso: o jovem homossexual.
"Há um clima de pânico conservador, não se pode falar mais nada que venha a
irritar a bancada evangélica", diz Veriano. Ele lembra, nesta entrevista, de
campanhas e kits que foram deixados para trás. Afirma que nos anos 1990 fomos
mais ousados para falar de sexo. Critica quem deseja criminalizar as pessoas que
passam o vírus adiante. Duvida que homossexuais, prostitutas e usuários de
drogas, os mais vulneráveis à aids, sejam citados em qualquer campanha
eleitoral. "Os candidatos vão, sim, falar de direitos humanos, vão pregar a
igualdade, mas não vão tocar no nervo."
Estamos na vanguarda no tratamento da aids, como disse o Ministério
da Sáude?
Depende do que tu tá chamando de tratamento. Se for o acesso a medicamentos
antirretrovirais, sim, nós somos vanguarda. Se pensar na saúde integral da
pessoa com HIV-aids, não, não somos vanguarda. Podemos ser vanguarda na
política, mas no dia a dia, não. Repare em todas as necessidades que uma pessoa
com HIV exige. A rede não consegue atender bem em nenhum dos três níveis - de
baixa, média e alta complexidade. Como inserir 100 mil novos pacientes quando
não se consegue encaminhar a internação de uma pessoa já doente, com tudo
protocolado?
O estigma continua prejudicando o tratamento da doença?
As últimas conferências internacionais de aids confirmaram que ele ainda é o
grande obstáculo para o enfrentamento do HIV. Qualquer diretriz nova, como essas
de prevenção que estão sendo propostas, deve ser acompanhada de fortes ações de
combate e enfrentamento do estigma relacionado não só à própria aids, mas também
às questões à volta, como homossexualidade, uso de drogas, prostituição, sexo
fora do casamento, sexo na juventude, temas entre aspas meio malditos para
certos grupos e que acabam criando uma inibição muito grande no ministério. Nos
anos 1990 tivemos campanhas mais ousadas - aquela do Bráulio, por exemplo. Se
comparar agora, não tem uma sequer.
Fala-se menos hoje em sexo do que se falava na década de
1990?
Efetivamente, um clima de pânico começa a vigorar neste país. Não se pode
falar mais nada que venha a irritar a bancada evangélica no Congresso. E não são
só os evangélicos. Há certos políticos que usam as religiões como forma de
legitimar seus posicionamentos conservadores diante de certos temas, quando isso
não tem nada a ver com religião. Veja a censura ao kit anti-homofobia, que tinha
o aval da Unesco e da Unaids. Isso mostra qual é a política de saúde sexual para
falar com os jovens.
O Ministério da Saúde incluiu neste pacote de ações uma campanha
nacional para o combate à aids com o slogan "Para viver melhor, é preciso
saber". Quer dialogar exatamente com os jovens, que têm se mostrado menos
sensíveis aos riscos da doença. Acha que agora acertaram o foco?
De novo, temos que ver de que jovens estamos falando. Como o próprio
ministério reconhece, a situação mais dramática é entre os jovens homossexuais.
Mas, ao mesmo tempo que o ministério admite o crescimento agudo da doença nessa
população, ela tem recebido muito pouca atenção em termos de programa de
prevenção e de educação sexual. Um exemplo? A campanha de carnaval de 2012, que
era destinada a eles e foi censurada. Ela mostrava dois meninos jovens
conversando, numa sugestão de paquera. Então vinha uma fadinha, como a de um
desenho animado, e botava a camisinha na frente deles. Por pressão da bancada
evangélica, o governo cedeu e essa campanha foi censurada depois de já ter sido
lançada na quadra da escola de samba da Acadêmicos da Rocinha, na zona sul do
Rio de Janeiro. Nessa cerimônia foram exibidos quatro vídeos, que seriam
veiculados nas redes de TV nacionais, sendo três antes do Carnaval e um
após.
Há quem atribua o não uso da camisinha pelos jovens de hoje ao fato
de essa geração não ter vivido o início do enfrentamento da aids. Ela não viu
artistas, esportistas nem parentes morrendo com a doença. Concorda com essa
avaliação?
Não é uma coisa tão simples. Não basta saber que tem que usar preservativo,
mas se tem acesso a ele, em que condições, o que está pensando sobre ele. As
pessoas não usam ou deixam de usar camisinha simplesmente por razões racionais.
Faltam mais campanhas específicas para essa população, principalmente nos níveis
estadual e municipal. A educação sexual nas escolas também estancou. A gente não
tem avançado na educação em geral - e aí a educação sexual também não avança.
Existe rejeição na comunidade gay em relação aos soropositivos
homossexuais?
Sim, o estigma perpassa os grupos afetados. É resultado também da falta de
campanhas dentro da própria comunidade. Há diferentes maneiras de reagir à
presença da doença dentro dos LGBT. Nos grupos mais organizados de homossexuais
masculinos, por exemplo, existe certa tensão sobre como incluir a aids nas
pautas do movimento. Será que falar da doença reforçaria o estigma "aids igual
homossexualidade"? Não há consenso sobre isso. De qualquer forma, esses grupos
ainda não se apropriaram das novas perspectivas, dos novos métodos, até porque a
agenda do movimento está muito orientada para o direito ao casamento
igualitário, à adoção. A aids acaba ficando um pouco atrás. Por outro lado, é
interessante ver que as lésbicas pressionam o Ministério da Saúde para receberem
mais informações e prevenção ao HIV-aids, ainda que, epidemiologicamente, a aids
não seja algo tão expressivo entre mulheres que fazem sexo com mulheres. Já no
caso das travestis, outra das letras do LGBT, a situação é muito grave. Se é
difícil para uma pessoa não travesti ter acesso à rede pública de tratamento,
imagine para uma travesti.
A proposta de oferecer o medicamento a soropositivos que não
desenvolveram a doença poderia sobrecarregá-los com efeitos
colaterais?
Concordo com a proposta de não esperar os sintomas, desde que o soropositivo
seja informado dos benefícios que esse tratamento precoce pode trazer, assim
como dos efeitos colaterais e efeitos adversos, que aliás não são a mesma
coisa.
Qual a diferença?
Os adversos são os efeitos ruins, como enjoo, intolerância ao medicamento, um
problema estomacal e intestinal ou coisa assim. Um efeito colateral pode ser
sentir-se mais doente porque está tomando um medicamento. Mas um efeito
colateral também pode ser um efeito bom. Ter menos potencial de transmissão de
HIV para outra pessoa, por exemplo, traz benefício para a sexualidade do outro e
para o soropositivo. Ele vai se sentir mais tranquilo. Muito soropositivo para
de transar, mesmo que se previna, porque não aguenta a pressão de se achar um
vírus ambulante, uma bomba viral que pode infectar de qualquer jeito. Uma
informação mais completa sobre todos os efeitos clínicos pode inclusive
estimular uma adesão maior ao tratamento.
Você é a favor de criminalizar quem possa vir a passar o vírus para
alguém?
Não. Saúde pública, quando tratada como lei criminal, tal qual o aborto e as
drogas, não dá certo. Reforça o preconceito, afasta as pessoas da ajuda, do
sistema de saúde, aumenta a possibilidade de violação dos direitos humanos. Vai
ficar muito difícil erradicar a epidemia porque tu vai ter pessoas cada vez mais
buscando se esconder. Elas se sentirão potenciais criminosos, e gente perigosa
tem que andar clandestina. Não vai ajudar em nada.
Ainda vigora o barebacking (sexo desafiador sem o uso de camisinha)?
Ele é muito mais evidente nos Estados Unidos, embora o nome tenha chegado ao
Brasil. Tem gente por aqui inclusive dizendo: "Transei sem camisinha duas vezes
neste ano, fiz barebacking". Não é barebacking. Barebacking não pode ser
confundido com um fenômeno de sexo desprotegido. Ele é um posicionamento quase
que crítico frente às questões de prevenção. São grupos que resolveram desafiar
o discurso da camisinha adotando não só o sexo desprotegido, mas outras
práticas, como sexo mais orgiástico, com certos rituais. É um posicionamento
ético, político, quase filosófico.
O que acha de o teste de HIV vir a ser vendido em farmácias? As
pessoas aguentariam a notícia de um resultado positivo?
Imagino que aguentariam, assim como outras pessoas aguentam o tranco quando
vão a um laboratório privado, fazem o teste e recebem o resultado pelo balcão ou
pela internet. Se elas se jogam embaixo de um carro? Acho que não, senão
teríamos mais notícias de suicídio. Se ficam deprimidas, a gente não sabe, mas
as pessoas têm certa curiosidade em relação a isso e não querem ir ao SUS
justamente pela inoperância e pela dificuldade que é. Agora, seria muito
importante que o teste de farmácia informasse sobre como a pessoa pode recorrer
para ter amparo, acolhimento e solução de dúvidas diante de um teste positivo.
Algo como: procure o telefone tal, leve seu resultado para o endereço tal, que
você será referenciado a um serviço de saúde especializado para exames
complementares. Tem que ter.
O Rio Grande do Sul estaria vivendo uma epidemia de aids. A que se
deveria a predominância de casos nesse Estado?
Tenho acompanhado algumas discussões sobre o Estado. Dos 20 municípios
brasileiros mais afetados pelo HIV, 15 estão no Rio Grande do Sul, em especial
na região metropolitana de Porto Alegre. Ainda aguardamos dados analíticos sobre
essa incidência tão alta, mas temos algumas hipóteses. O Estado, durante a
gestão da governadora Yeda Crusius, investiu muito poucos recursos na saúde, o
que implicou um sério desmantelamento de programas de prevenção tanto
governamentais quanto não governamentais. Também havia uma rede que atuava muito
ostensivamente na prevenção em locais de encontro sexual e, em especial, de
encontro homossexual, além de programas bem estruturados para a redução de
danos. Mas, da metade da década passada para cá, esses grupos vêm fechando as
portas, pararam por falta de apoio com o trabalho de prevenção.
Acredita que algum candidato nas próximas eleições toque na questão
da aids e nos motivos que levam à sua disseminação?
Os candidatos podem até falar sobre aids, mas duvido muito que tratem dos
temas quentes: a sexualidade, a prostituição, uma menção mais liberal ao uso de
drogas. Principalmente os candidatos mais majoritários, mais centrais, não vão
mexer nessa casa. Mesmo porque, voltando ao avanço conservador nas atitudes e
valores, esse contexto não é uma coisa exclusiva do Brasil. A França, por
exemplo, tem esse movimento forte contra a prostituição. Acho que os candidatos
vão, sim, se dizer a favor da igualdade, vão falar de direitos humanos. Mas não
vão tocar no nervo.